quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sobre a lenda do cisne no lago

Sobre a lenda do cisne no lago, eternamente preso ao reflexo dos olhos alheios....ou sobre vida, morte e vida. Metáfora de um feminino que também leva tempo para nascer e que renasce continuamente mulher, a cada nova vida que se impõe a nós,em luta,encantamento e liberdade. Mas primeiro há que romper a bolha dos silêncios com os quais se recebe uma jovem mulher que nasce. Porque há que se proteger dos perigos do mundo, guardar este corpo, tão defeso ao ataque, tão sujeito a agressões. Necessário instruí-lo, sujeitá-lo a toda sorte de regras. Preservação, silêncio,decoro, singeleza. A toda mulher que nasce é dado um peso de existir em dores, de ser e saber-se fonte ancestral de pecado, objeto de disputa, fruto de desejos que se firmam na violência inesgotável do outro. Mulher que cresce, pernas que espicham, braços querendo alcançar o infinito?Voar, não!Pode ser perigoso demais, vai que se machuca, pode ser violada, um corpo feminino em crescimento,nada pode ser mais terrível do que oferecer-se assim inteira, ousando ser livre. Porque cabe às meninas a espera do olhar alheio,espelho que as oriente diante do que devem ser. Como um grande corpo de baile,obediente e silencioso. Também me coube um lugar, como muitas iguais a mim, de ser e estar. Em silêncio. e obediência.Corpo atravessado por regras, recomendações de recato. No corpo,nos olhos, o desejo de voar, de ser cisne..De ser mulher. E por que não ousar ser,sem medida ou limite, tudo aquilo que suas asas permitiram alcançar? E por que não negar esse lugar de espera, de limitação e dor, eternamente para os olhos alheios, a posse e a pequenez? Pois que é do feminino a expansão eterna, de si para o mundo, ao conhecer sua própria potência e liberdade, desse corpo que não pode deixar de aprofundar-se em sensível e movimento, amor e entrega, mas também criação e sabedoria? quantos seriam capazes de alcançar seu voo? Quais seriam as vozes que se ergueram para encorajá-lo? Pois qual seria a natureza dos cisnes senão voar, diante do mundo, sobre um palco, na irremediável tarefa de ser mulher? Corpo que cria, vida que renasce em ventre e ancestralidade, olhos que sonham o mundo? Porque é do amor compreender que asas são feitas para voar Então estende tuas asas e seja cisne, em poesia e afeto. Pois que seja da vida o exercício de renascer em sangue e lágrimas, nas mãos de tantos outros cisnes que te protegem e guardam. Desses úteros que se postam diante de ti, enquanto espera o tempo certo das coisas. Ainda há medo em teus ossos, ainda há dor na tua alma. Mas segue, rompe as amarras de dor que ainda prendem teus passos. Olha pro sol. E voa.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Poetizar-se

Poetizar-se Ousar nascer Romper a pele rasgar o ventre existir e pé ante pé no correr das horas arte. vida gozo. ser igualmente luz e sombra maldita seja a superficialidade morna dos covardes dos que não mergulham eu quero é esse desespero esse caos o peito rasgado,o instante de silêncio e dor.Mãos espalmadas.Romper a madrugada. Atravessar a noite. Eu quero é o grito que extrapola a garganta Esse saber-se entre a linha fina do precipício Morte.Vida.Carnaval. Que me importa se amanhã não virá? Eu quero é a arte que se costura na pele, as linhas impressas feito tatuagem, os pés descalços que sangram no sambar a dor, as mãos vazias. Eu quero é renascer, mergulho,vendaval,princípio,fim e meio. porque só se faz poesia no morrer muitas vezes, senão é técnica,desenrolar fugidio e raso de dedos no papel.Eu quero é a arte escrtia a sangue, sem a qual é melhor morrer. Eu não. Eu escolho nascer todos os dias,sendo sempre diversa..Na coragem de ser dor, poesia e lágrimas e so assim resgatar a poesia de todos os dias.. Deixa que o mundo te chame.Entrega tuas certezas.porque não haverá outra vida para dizer sim e ser finalmente arte. Arrisca.e Voa.

sábado, 7 de novembro de 2020

Sobre tornar-se cisne

Sobre a lenda do cisne, eternamente preso ao reflexo dos olhos alheios... Metáfora de um feminino que também leva tempo para nascer e que renasce continuamente mulher, a cada nova vida que se impõe a nós,em luta,encantamento e liberdade. Primeiro há que romper a bolha dos silêncios com os quais se recebe uma jovem mulher que nasce. Porque há que se proteger, dos perigos do mundo, guardar este corpo, tão defeso ao ataque, tão sujeito a agressões..Necessário instruí-lo, sujeitá-lo a toda sorte de regras. Preservação, silêncio,decoro, singeleza. A toda mulher que nasce é dado um peso de existir em dores, de ser e saber-se fonte ancestral de pecado, objeto de disputa, fruto de desejos que se firmam na violência inesgotável do outro, a saber, masculino. Mulher que cresce,pernas que espicham, braços querendo alcançar o infinito?Voar, não!Pode ser perigoso demais, vai que se machuca, pode ser violada, um corpo feminino em crescimento,nada pode ser mais terrível, do que oferecer-se assim inteira, ousando ser livre. Porque cabe às meninas a espera do olhar alheio,espelho que as oriente diante do que devem ser. Também me coube um lugar, como muitas iguais a mim, de ser e estar.Corpo atravessado por regras, recomendações de recato, de que me protegesse e guardasse.No corpo,nos olhos, o desejo de voar, de ser cisne, branco e esvoaçante,atravessando o palco iluminado no primeiro balé que assisti. Ali Odette,a primeira bailarina que eu via equilibrar-se em pontas, era então escolhida,o cisne mais belo, diante de tantas, para ser enfeticiada, cristalizada na etérea imagem de um cisne negro,condenando a exibir-se todas as noites no lago do reino do principe Siegfried. Presa aos desígnios de um mago, entregue à adoração de um príncipe, não foi dada a Odette a chance de voar, exercitar suas asas, romper o lugar para o qual fora destinada, condenada a ser reflexo dos olhos alheios, eternamente prisioneira . Assim, diante da minha embasbacada expressão de menina sonhadora de 11 anos, Odette era mantida prisioneira de posse e desejos masculinos, a título de adoração. O espetáculo adentrou minha alma e meus pés sonhavam com o voo de Odette, sem ter entendido que ao voar para a liberdade, o cisne também oferece-se em sacrifício, morrendo diante dos olhos da plateia, pobre lugar desse feminino eternamente desejante, objeto de adoração e medo, preso a amarras , condenado a ser e estar onde apontarem os olhos alheios. Poderia Odette salvar-se do destino cruel, ousando acreditar na sua propria trajetoria , reconhecendo-se como o cisne que era, seja branco ou negro, igulamente luz e sombra e assim, romper o castigo imposto e finalmente voar? Que posse tão terrivelmente destrutiva seria essa de um masculino atroz, capaz de prender e torturar um cisne, sem jamais apreciar-lhe a beleza, contentando-se em condenar-lhe ao mesmo lugar de espera e medo, silêncio e imobilidade apenas para ter-lhe ali,ao alcance dos olhos,preso à incerteza de ser? E porque não ousar ser,sem medida ou limite, tudo aquilo que suas asas permitiram alcançar? E por que não negar esse lugar de espera,de limitação e dor, eternamente para os olhos alheios, a posse e a pequenez? Pois que é do feminino a expansão eterna, de si para o mundo, ao conhecer sua própria potência e liberdade, desse corpo que não pode prescindir de aprofundar-se em sensível e movimento, amor e entrega, mas igualmente criação e sabedoria? quantos seriam capazes de alcançar seu voo? quais seriam as vozes que se ergueram para encorajá-lo? Pois qual seria a natureza dos cisnes senão voar, diante do mundo, sobre um palco, na irremediável tarefa de ser mulher? Corpo que cria, vida que renasce em ventre e ancestralidade, olhos que sonham o mundo? Porque é do amor compreender que asas são feitas para voar e é da vida compreender que os voos são ainda mais belos quando feitos de par em par. Pois então, Odete,ousa enfrentar o covarde feiticeiro, prisioneiro de seus próprios medos e de tua prisão interna. Estende tuas asas e seja cisne, rodopiando em direção a si mesma, em tuas infinitas narrativas de poesia, arte e afeto.pois que seja da visa o exercício de renascer em sangue e lágrimas, nas mãos de tantos outros cisnes que te protegeram e guardam. Desses úteros que se postam diante de teu sono,enquanto esperar o tempo certo das coisas. ainda há medo em teus ossos, ainda há dor na tua alma,e alavanca teu próprio sonho, rompe as amarras de dor que ainda prende teus passos e segue sempre em direção ao sol. e voa.

domingo, 4 de outubro de 2020

Da casa de Santa Teresa

Na casa da minha avó as gaiolas de passarinho ficavam todas dispostas na área de passagem da sala para a cozinha, em meio à escada de pedra que dava para o quintal. Todos os dias meus tios ou minha vó limpavam a gaiola, trocavam o jornal, colocavam alpiste nas tigelas e as gaiolas voltavam para o lugar. Eu sempre achei estranho ter um bicho de estimação que não se pudesse tocar ou soltar no quintal, mas admirava de longe a delicadeza das penas, o formato dos bicos, o jeito que punham as patinhas entre as grades de metal. Sons mesmo eu quase não ouvia, não dos passarinhos que viviam na gaiola. Ouvia muito dos que passavam pelo quintal e que eu via da janela da casa. Pela manhã o bem-te-vi, logo cedinho, antes de eu ser acordada pela minha avó. De tarde, os muitos sons de passarinhos que voavam perto da goiabeira e sempre de passagem, nunca parando por mais de alguns minutos e disputando espaço com as cigarras que - muitas vezes no verão - anunciavam mais um dia de sol. Era ali, no espaço livre do quintal de pedra que dava vista para o Catumbi, que havia uma reunião colorida e barulhenta de passarinhos, pombos, borboletas, todos livres, sem grades ou portas. Eu demorei muitos anos para entender a lógica das coisas, das engrenagens que permitem uma canção nascer, dessas que a gente só canta em liberdade. E me vi pequena, sentada no degrau de pedra da casa da minha avó, esperando os passarinhos nas gaiolas cantarem. Tantos anos depois, nos desencontros de cada dia - me dei conta de que era a liberdade de ir e vir, no percurso da vida, o que fazia a canção mais bela. Assim como era o afeto primeiro do gesto da minha avó de me acordar já de meias, no dia de escola - o que tornava o dia mais doce. E adoçar meu leite, e esquentar a água. E me deixar livre para ir e vir, porque era naquele lugar de colo e histórias, onde o amor sempre estaria. Sem amarras . No percurso do calendários, no ponteiro do relógio, a vida me trouxe muitas gaiolas e nem sempre era possível cantar. Muitas criadas por mim e minha terrível insistência em compreender os sentidos e vividos. Por vezes a voz embargava e a obrigação da sobrevivência turvava os olhos. Me custou muito ver minhas grades, tantas portas que eu nunca pude abrir. Tantas outras que dinamitei sem necessidade. Até entender que a música soa mais bela na liberdade de ir e vir, na certeza do amor que atravessa o peito, que existe por si. Essa era a poesia que eu não compreendia na infância, cujo sentido exato talvez eu não consiga entender jamais. Sobra contudo a certeza da impermanência do tempo, no correr da vida, e o sentido de viver e ser amor, na liberdade de sentir, poesia e prosa, caos e tempestade, fluxo que escorre dos dedos até alcançar a nota exata- imprecisa por definição - infinita por natureza. E nesse universo , as palavras e definições não abarcam. Nem poderiam. Para além de grades, portas e definições, há o amor que existe, conexão com o universo de ser e estar. E é tudo. sei que de onde ela está minha vó me dizia, como sempre disse: “minha filha, coração é terra onde ninguém pisa”. E do colo que tanto me faz falta nesses dias tão tristes, o silêncio falaria por mim, de todas as coisas cuja sabedoria ainda não ouso compreender.

Oração (a a 4 de outubro)

Amor,pois que seja palavra essencial... Corpo,alma,oração. Amor que morre e renasce.Caos e tempestade. Dor e sangue.Viver e morrer. Todos os dias. E que não há palavra que possa refrear.. E que todos os ritos não vão impedir. E que toda razão nao vai explicar. Que rasga o peito e faz correr a vida,no fio da navalha, nas tramas da vida,mãos postas em oração,saias que giram,pés descalços no chão.... velas acesas e o cheiro forte do incenso que atravessa a escuridão... Contas dispostas na palha, vozes que se elevam em canção... Amor, vida, prece feita em mãos unidas. Olhos que miram o futuro,para tudo de bom que ainda há de vir.. Coragem para entregar-se ao fluxo de viver, ante o mar revolto,mãos firmes no leme de ser e estar...me dá tua mao,amor e sigamos juntos, com a coragem que só quem tem o peito rasgado em definitivo pelo encontro de pele,alma,vida, pode ter e ser.

sábado, 3 de outubro de 2020

Alice e o poço dos desejos

Então Alice caminhou por dentro da floresta e alcançou uma clareira. E foi ali onde encontrou o poço...Um buraco de pedra, escuro, interminável. Experimentou a borda. Intransponível. Tentou inutilmente iluminar com um espelho. A luz da noite refletiu timidamente um restante de água no final do breu. Subitamente Alice teve sede . Havia sido uma longa caminhada e ainda sentia as dores reverberando pelo corpo. E ainda tinha as mãos cortadas pela tentativa de se desvencilhar dos golpes certeiros da mata escura que acabara de atravessar. Mas como alcançar o fio de água de um poço sem fundo, sem um balde que a pudesse auxiliar? E se fosse um poço dos desejos, ela imaginou. Então seria fácil pedir algo que a fizesse chegar onde queria. Procurou uma moeda nos bolsos. Nada. Perdera tudo que tinha no percorrer da última estrada. A dor na garganta começava a se fazer insuportável. Seu corpo todo gritava pela água que, naquele momento, já parecia um oceano profundo capaz de fazê-la mergulhar. Então Alice terem uma ideia. Ajoelhou-se diante do poço, rememorou algumas das suas orações favoritas e pediu, intensamente que o universo lhe presenteasse com um balde, um copo, uma corda que lhe permitisse alcançar a água. Fechou os olhos e desejou com toda sua alma ser atendida. e rezou. E rezou, pedindo e desejando com toda intensidade de que fora capaz. foram ,longos minutos - ou seriam horas e dias- até que o silêncio cortou seu peito. Nada aconteceria Alice teve então uma crise de choro E parecia que seu peito abria em duas partes, diante da dor. Mas como podia não ser aprendida, se pedir com tanta fé, se dedicar cada parcela de suas energias a desejar algo tão justo, por que ainda acontecerá? Abriu os olhos e contemplou o céu. Talvez sua fé a tivesse abandonado. Talvez seu destino fosse realmente morrer ali diante do poço. Sangrando diante de suas expectativas frustradas. Não era justo. Agora que finalmente sabia o que desejava, porque o universo não colaborou. Não seriam suas orações eficazes o suficiente? Como uma provocação, a lua cheia diante de si refletia nada além do que um retumbante silêncio. E nenhum sinal nesse momento poderia servir de farol. O universo respondia a seus pedidos com uma completa indiferença. Alice chorou. E pediu. E rezou por mais um longo tempo. No final, exausta, exaurida, o suor escorrendo do rosto, as mãos retesadas de dor, postou-se no chão ao lado do poço. E fechou os olhos.no ato continuo encontrar a escuridão,mergulhou no seu próprio silêncio e então vislumbrou a si mesma,deitada no escuro de uma floresta, em total solidão. Esperando pelo retorno do mundo diante da única e inabalável certeza de que nada aconteceria. E desejo,a fé,estavam dentro dela. E a ninguém mais caberia ação, nem mesmo ao universo. Era ela a dona da história, através da qual percorreu longos caminhos, sangrando em muitos deles. resistira. Estava ali, ainda em fé e desejo, ainda a mesma Alice e suas mãos vazias. E sua poesia. E seu amor. E Então soube o que devia fazer. Descalçou as meias. Tirou os sapatos, desamarrou o cabelo, sentou-se na beirada do poço. Por alguns segundos contemplou a lua que,cúmplice, forneceu seu raio mais luminoso de luz,atravessando as nuvens. Alice tocou a borda do poço, de pedra,intransponível, ressecado pelo tempo. E sorriu. Rememorou o percurso da viagem. As páginas rasgadas. os instantes de dor. A alegria reverberando pelas paredes.Todos os raios de sol atravessaram sua pele. Tinha afinal descoberto as águas de um oceano profundo dentro de si. E não havia mais dúvida do que deveria fazer. Girou as pernas, contemplou a escuridão do poço e mergulhou.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Comunicare III

Dança. Movimento que cria Espaço entre. Dois corpos, notas que soam Vida. Respiração. Tecido e peles. No tear da vida. À espera do ritmo certo, da cadência perfeita, do instante exato. E então o imprevisível, salto no escuro, estendendo a mão sem medo, ousando ser encontro. Ossos. Músculos. Imponderável. Caminho. Fluxo de vida. Chão do palco. Poeira e suor. Morte e Vida. Desvio. De quantas formas é possível existir e reexistir? Em tempos de morte, ainda é possível reaprender a voar? Qual a comunicação necessária, no espaço da dança, quando as palavras se tornam desnecessárias? Nenhuma frase, construída às pressas, verbos adjetivos, pronomes, conceitos e ciência pode definir o instante de silêncio que se prolonga ao infinito, na nota que ainda vibra na pele, no contato das mãos, pernas enlaçadas, par. Contradança. Ser um para ser múltiplo Mover-se mundo afora, Riscando o chão cotidiano, que se constrói e de sim e de não, de corpo que pulsa, gesto que fala, à revelia do discurso. Nos atravessamentos da estrada, Em mar e fogo, Prosa que se faz poesia, Mãos que acolhem, rumo de desvios, De curvas, do girar da saia, Do pulso que conduz, dos olhos que prendem no instante de som e silêncio. . Que importa o tempo breve, os passos incertos, as dores do mundo, a duração da canção? Aqui dentro, só há espaço para o sim, ousando ser vida, até o limite, infinitamente.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Embriogênese

Nasço. células e afeto Sangue e membranas Antes Boca.Pele.Lábios. Toque. Mãos. Corpos. Rupturas. Conexões Textura de um sentir mútuo Que se desfaz em sons e imagens. Luz e sombras. amor. Movimento que se quer Alma. Comunicação.Morte.Dor. Luta de suor e vida. E então,silêncio. Semente que germina. Dois que se faz três. Multiplicados.Divididos em um. Membrana que se rompe. Tecidos. células. órgãos. Existir. E seguir no percurso de criar-se. Gente.Pele.Ossos.Músculos. Sangue. Ser

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Nós: sobre amor em tempos de pandemia

Pelo tempo de sempre Na certeza do nós. Eu. Você. Vida. Meu corpo. Tua pele. Na superfície lisa dos lençóis amassados. E a luz do sol que entra pela janela. Depois de tantos dias, houve um instante interminável em que cheguei a pensar: Nunca mais. Eu? Você? Morte? E o fluxo de vida sobre todas a coisas. Ser. Enquanto as manchetes contavam os mortos. E os corpos acumulavam nas esquinas. Nós. E a trama delicada da tua boca na minha. Ousando ser vida, onde o desespero habitava. Quando foi que paramos de ouvir o mundo, os relatos da pandemia e desafiamos o não, perscrutando um silencio só nosso? Mantra. Amor. Benção. No fundo tu já sabia e suas mãos já falavam na minha pele: vai ficar tudo bem. De que me adiantavam as estatísticas, os mapeamentos detalhados de sim e de não se era no espaço Entre onde eu encontrava um caminho de ser eu e você? Haveria mesmo espaço para o amor enquanto a cidade fervia e sangrava? Mas sim. Todos os dias enquanto o mundo aguardava, eu, você, nossos planos. E a sutil trama de ser sim, fluxo de corpos que pesam um sobre o outro, vida que se quer esperança, à revelia dos dias de quarentena. Resistimos. Somos. Tantos meses depois, na raiz do meu corpo, no mármore escuro da tua pele seguimos, em nossa casa, que construímos juntos, cada um de seu lugar, dia a dia, na longa espera. Vida que se quer esperança. Reconstruir afeto para ser coletivo. Mundo que se quer casa. Poesia que se quer fé. E seguimos, tu e eu, na inesperada metáfora de vida que somos, atravessando a morte e a desesperança pela coragem de ser nós

Do encontro de Oxum e Saturno

Das Terras do sem fim, dos mares do Aiocá ainda hoje se conta do dia em que Oxum e Saturno se encontraram no céu. E toda a Terra tremeu diante do embate do Senhor do tempo e da rainha das águas que rasgam o solo, das profundezas. Foi Saturno primeiro que chegou e de repente o Universo atravessou-se de um silêncio profundo diante da figura imponente que ostentava um elmo de bronze e carregava nas mãos um escudo e uma lança, que cruzava diante do peito, em desafio. E em meio ás últimas horas de uma tarde azul, as nuvens começaram pouco a pouco se reunir, como se temessem a ira do poderoso Deus. E o vento fez-se frio enquanto na Terra os homens, sem saber do que se passava, corriam a recolher do mar os barcos, fechar as janelas, antevendo uma tempestade. Impávido, silencioso, Saturno aguardava o fim do dia para recolher-se em profunda meditação. Foi então que viu uma luz cortar o horizonte, e em instantes chegou Oxum, envolta em seu vestuário amarelo, dourada até a ponta dos dedos. E veio dançando, agitando as saias diante do vento, erguendo os braços, brandindo o espelho e girando suas pulseiras enquanto o sol punha reflexos radiantes em sua coroa e punhos. Sua imagem atravessou Saturno como a um raio, correndo o peito fechado de aço e provocando uma dor profunda. Sem ação, o Deus cambaleou para a frente, o que provocou o riso de Oxum. Desafiado, temendo o ridículo, Saturno firmou os pés e ergueu o queixo, franzindo a fronte em profundo silêncio. Oxum não fez caso, sorriu de leve, ergueu seus braços, recomeçou a girar. No movimento das saias, o vento parou de ventar, e as águas dos rios silenciaram seu ruído, pondo-se a ouvir. Então Oxum cantou. Entre os homens um instante de silêncio se fez, na nascente das águas. E o correr do rio tornou-se forte e, atravessou as rochas que se cercavam as margens, rompeu o barro que sustentava o leito do rio, alcançou a estrada e levou uma chuva de pedras e lama até as casas dos homens. E prosseguiu, carregando o que encontrasse. Saturno observava, sem pronunciar palavra. Como era possível, sem que fosse preciso brandir uma espada, a água calma do leito dos rios atravessar a rocha e fazer a vida correr? Como se adivinhasse seu pensamento Oxum sorriu e então contou... - Meu canto é de vida, que nasce no ventre, águas que correm para além do tempo dos homens. Eu danço o sangue das mulheres, a vida que nasce por entre o silêncio, o encontro que se dá entre Céu e Terra, enquanto os homens dormem, eu danço por entre sangue e lágrimas, no fundo do leito dos rios, nas águas que correm por entre as rochas da Terra, atravessando sim e não, noite e dia, luz e sombra, movendo ventos e enfrentando tempestade. Meu canto é de vida, da dor de ser atravessado pelo tempo do encontro, vida que se faz no toque dos corpos, instante que se dá no tempo de dizer sim. Minha dança bebe das águas da poesia dos homens, atravessa suas almas e planta no ventre das mulheres a semente da vida. Eu danço para celebrar o amor. E diante do amor, não há tempo que paralise a vida, quando as águas tem que correr. Dizendo isso, Oxum postou-se diante do Deus - que era ao menos três vezes o seu tamanho - e sorriu. Saturno então contemplou a face de Oxum. Confuso, surpreendido, sentiu o peito abrir-se numa dor profunda e todos os seus ossos tremerem diante da certeza de que nada jamais seria como antes. E dos olhos por trás do elmo, sentiu vir da garganta um lamento dolo roso, preso há tempos dentro do peito. E então baixou as armas. Oxum, emocionada, tomou nas suas as mãos do guerreiro, que então sorriu. E fez-se um longo silêncio, entre Céu e Terra. E ninguém mais soube o que se passou entre os dois naquele intervalo. Nem mesmo as nuvens que resolveram, cúmplices, adiantar o pôr do sol. O que sabe é que naquele dia na aldeia dos homens os mares subiram, fora de costume e uma lua azulada rasgou os céus por todo o tempo da noite enquanto homens e mulheres dormiam. E nunca mais deixou-se de ouvir nas noites de lua cheia, um instante de silêncio enquanto o sol corta o horizonte um pouco antes da noite chegar.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

sobre as artes do corpo

Que a pintura seja uma técnica é verdade.Que a fotografia seja uma técnica, também. Mas que técnica encerra o sutil movimento do corpo, contorcendo-se um um gesto extremo,desesperado, que não há técnica que possa apreender?ou linguagem que consiga explicar? No delicado deslocamento de corpos e braços há uma essência tão profunda do humano em toda sua fragilidade. E potência. Assim as artes do corpo, a dança, o teatro e a música que vem apenas da voz não ignoram o suporte da técnica,mas encarnam um outro lugar, de viver e ser, onde o corpo é a superfície de inscrição de movimentos e a pele é a membrana que cria o encontro entre o eu e o mundo. Na essência de ser arte, que se respira e sente, na simplicidade de estar nu diante da própria expressão, na dor de ter as mãos vazias diante de si e do mundo e de ter apenas suas próprias emoções para mergulhar no ato de criação reside o mistério profundo da arte. Expressão de si, dores e paixão, fragilidade e sensível porque nada mais temos, nós que oferecemos nossos corpos,pele e ossos, sangue, lágrimas e êxtase na inescapável trajetória de ser arte porque é nesse lugar onde percebemos que não há caminho possível além da entrega e a única palavra que se pode dizer é sim.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Narrativa artística- dia 1

Onde pisam meus pés? Meus pés pisam um chão que insiste em desaparecer ainda que o cansaço do corpo convide à inércia A luz do sol me move E a arte?Narrada coletivamente. Poesia em tempos de pandemia? Ainda é possível? Para onde levam meus pés? Para dores profundas,transformações e marcas que ainda pesam no prosseguir. Insiste. Caminha. Não é mais a certeza do êxito mas a teimosia absoluta de ser poesia, narrada e vivida, que te indica o caminho. Infinito. O vento descortina o inesperado Persiste uma estrada longa e tortuosa,na incerteza dos passos O medo já não existe. Em meus pés toda a arte acumulada nesses anos e nenhuma certeza... Apenas fé na continuidade da estrada.. e de que é preciso,mais do que nunca,prosseguir..

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Mulher de água

Para as mulheres de água que eu amo e para aquela que eu tento ser, todos os dias. Mulher de água. Rio. Mar. Tempestade. Fluxo de vida por entre as pedras do chão. Sangue e carne. Pele e ossos. Viver que se estende no movimento das asas em voo solo. Pés esticados para alcançar o próprio mundo. Fluir intenso. Grito preso na garganta. Respiração Dança solitária em meio ao caos do vento, que desarruma as certezas, que põe ao chão as tuas verdades. Que abre tuas mãos ao novo. Que se arrisca sempre ao encantamento, ao inescapável emergir da arte, que rasga teu peito, que te atravessa a carne, em um sentir inesgotável de possibilidades. Que não se cansa de buscar a si mesma e de entregar-se continuamente ao amor e à vida e morrer para renascer ali adiante. Sempre outra sem deixar de ser a mesma. Poesia e dor. Caos e tempestade. Calmaria de tuas páginas escritas a sangue, com teus punhos cerrados diante das lágrimas de tuas perdas Chora. Sente. Ama. Grita Que tuas amarras de afeto não te prendam as pernas, quando te for necessário correr. Que tua voz nunca se cale diante de tudo que te fere, que te interdita o prazer, que te faz tremer de raiva e de medo. Não deixa que te aprisionem em uma confortável prisão de certezas, na calmaria superficial de ser espelho, tu que é esfinge diante de si mesma. Ousa ser apenas e somente teu próprio universo interior Mergulha no teu sentir infinito, imenso, inesgotável. E voa

sábado, 25 de julho de 2020

sobre ser e estar

Sobre ser e Estar.. Para debinha, entre amor e sombras.. Da morte não sei quando...Sei que é o atravessamento do ser e estar. E me basta saber para além do como,mas da finitude de todos os meus gestos e a necessidade de mergulho,em cada partícula de vida. Porque sempre deixaremos de ser e na certeza da impermanência, vivemos. Como sobreviver ao correr do tempo, na incapacidade de retê-lo com as mãos, de interromper a tempestade de areia que nos adentra a retina, presos que estamos a esta implacável ampulheta, que leva a cada grão mais um dia de nós?Será na inevitabilidade do ir-se, na dor pela compreensão do enquanto, que viveremos, amaremos e morreremos.Sós. Frágeis. Perdidos entre nosso próprio delírio. Atravessados pela sutileza de estar e pela urgência de ser. E seremos tanto ou mais enquanto conservarmos nossa inocência, o peito aberto para receber o novo e a inescapável necessidade de mergulhar em nós mesmos,luz e sombra,diante do caos. que fazer quando a cada passo nos tornamos mais e mais próximos do abismo?fugir?Não é possível,tão pouco ignorar as marcas que o vento deixa na pele,enquanto insiste em passar. O que nos resta, seres frágeis que somos,é admitir nossa única possibilidade de vida:amar,amar sem medida,sem equilíbrio e sem remédio e buscar até o final dos dias nossa narrativa apartada do universo,máscaras de nossas próprias máscaras. ´Porque fora do amor e da sua maior expressão sensível que se materializa na arte todo o restante é hipótese

terça-feira, 21 de julho de 2020

Sobre comunicação

Sobre comunicação Enquanto abro a janela,aos meus ouvidos chega uma velha canção, que atravessa a pele,vento que move as cortinas, derruba os livros da estante,bate as portas da sala Faixo de luz em meio ao silêncio da tarde. Da fumaça que sobe, entre os ponteiros do relógio, emana uma forma, Peito que se abre´para o novo, Memórias recém construídas de saber e ser. Cantiga de fé e de esperança, Som de crianças brincando no quintal,risos que atravessam as paredes, tinta e pincel em paletas recém lavadas. Cores que se misturam no mover das mãos.Mãos que giram no ritmo do mundo. Vida que se quer comum, em dor e espera, redescobertas e silêncio, prece que se tece em comunhão. Porque há só um caminho, dizem os sábios,aqueles que corajosamente enfrentam a solidão de não saber:o caminhar da alma, tessitura de sonhos e poesia, dor e chão, pisado todos os dias na incerteza de ser gente. Diante do caos, como permanecer, como insistir, ante o não ser? Á nossa frente muros e verdades caem em igual velocidade e tudo que temos é o peito pesado das nossas mortes, constantes e diárias. Ao lado,aqui e ali, as memórias do que fomos, paralisia que toma nossas pernas, cala nossas vozes,enquanto insistimos em cantar em separado nossas velhas canções. Mas como ignorar o chamado que se faz urgente, em todos os cantos, dentro dos sonhos das crianças,da boca dos velhos aos olhos dos artistas? Apenas uma palavra e é tudo: Amor. Amor como benção, caminho que se faz só, solitude de quem enfrenta o silêncio da alma, ousando ser fé e esperança diante do nada. Existir que é ser nós, no coser dos dias, lugar que só se enxerga de mãos dadas, liberdade que se quer comunhão, renascimento na fragilidade de se expor ao eu,essência do ser junto. Porque todos somos um e somos pela instância breve de caminharmos na mesma canção, almas expostas, artesãos do ar que respiramos, entre magia e razão, ousando criar mundos sensíveis ao toque de nossas mãos. terra pisada em muitos pés, rio que corre para se tornar mar, metáforas que sobram para além das páginas escritas. Porque só no ser em comum haverá a cura, saber incondicional através dos deuses que compartilhamos em nossas rodas, nas vozes ancestrais que ousarmos ouvir,equilibristas de nossos corpos, girando em sintonia com o ritmo da terra, mente,corpo,espírito,água,terra,ar, fogo, nós feito de silêncio e sons, fé e vontade. Amor

do caminho de volta

ao 16 de julho Pisando suave no chão da casa, caminho até o corredor vazio, de paredes brancas. Ainda não amanheceu e ainda há um silêncio que nos alcança, nas roupas jogadas no chão e a delicada poeira que restou nos cantos. E ali, no fim do corredor, nós dois, cada um em uma ponta da cama, um arremedo de lençol esticado às pressas, para conter nosso sono. No meio de nós, a vida e o atravessar do tempo, fragmentos de sim e de não no correr dos dias, dores que acumulam no compasso das dúvidas. Existir. Real. Para além do sonho, mas no cotidiano sutil e desgovernado de ser dois em meio às incertezas e ao caos. De tudo ficou um pouco e já são outras as músicas que ouvimos e nossas horas se multiplicam aos poucos, aprofundando o laço no intervalo das nossas mãos, que se esticam e alcançam uma à outra, mesmo quando tudo diz não. Quantos instantes de medo tivemos, em tão pouco tempo? Quantas vezes entre o eu e você, mil palavras não ditas, correções de rota, olhos que encaram o espelho, dias de dor. Às vezes, cada um do seu lado, sem saber onde guardar o afeto que construímos juntos, em tantos modos de ser talvez. Por que nós, justamente nós dois, depois de tanto tempo? Justamente agora? Quem sou eu ou você, depois de tantos dias, de reinventar a si enquanto o mundo gira e nada resta no lugar? Fora isso a vida, o instante de pausa da humanidade, as mortes nos jornais, a incerteza e o caos? Nós dois? Como? Enquanto dedilhas tuas notas, meu corpo gira, tentando encontrar o equilíbrio, o peito rasgado. A dúvida e a dor. O que fazer com esse amor enorme, desmedido, inesperado que surpreendentemente me atravessou, no momento em que minhas pernas se esticavam para alçar voo solo? Como ignorar esse insistente raio de sol que atravessou o café para pousar em cima da mesa, no meio do papel branco dobrado, que trocou de mãos e ali já havia uma vida inteira? E o percurso do táxi para casa nunca foi tão longo. Porque a única palavra que eu não ousava dizer era justamente a única possível: Sim. Para o amor, para mãos dadas, para o constante desassossego e a espera. Para a vida que me chegava completamente diferente do que eu pensei. Mesmo que eu não dissesse, na pele, olhos e até nos ossos eu dizia sim. E não deixei mais de dizer até o momento da primeira dor. E se? E se de repente confundimos nossas rotas e o mapa de nossas vidas precisasse ser reorientado? Eu, você. Nós? Por quê? E nossas metáforas, silêncios, mãos dadas, onde guardar tudo isso? Como sonhar de novo esticar as asas, quando havia um fogo novo no peito e ele invariavelmente passava por você? Melhor fugir, fazer de conta que não tinha passado de um sonho, dos que nos chegam de madrugada, sem que posamos controlar. Melhor seguir. Cada um do seu lado. Mas foi no primeiro movimento contrário, ponteiros do relógio ousando retroceder até o instante do encontro, que caminhei, corri, até o primeiro momento da gente, das primeiras músicas, o toque da pele e foi então que me reconheci no reflexo dos seus olhos, no abraço apertado, nas lágrimas, na espera e nos sonhos. Não mais meus ou seus apenas. Nossos. De ser e viver. E percebi, não sem uma pontada de dor, que estava tudo ali, exatamente como eu deixara. E que saudade eu tinha, porque sempre estivera ali, parada em frente ao mesmo café, esperando a carta dobrada chegar até mim, procurando tuas mãos, em meio aos lençóis, contando as horas para te ouvir e os dias para sentir você por perto. Ousando acreditar em meio à escuridão da tempestade que passou sem que soubéssemos nomeá-la. Nossos risos, as primeiras fotos, o café pronto, os joelhos juntos na varanda, o pôr do sol e a luz do meio dia sobre nossos corpos. Na metáfora que eu nunca esperei, a vida que atravessou a minha vida e me convidou a ousar voltar a sonhar, dessa vez, com a consciência plena de ser a um só tempo mente, corpo e espirito. E da dor que viria e veio, porque sempre vem quando se está à flor da pele, ao contato da essência, como tem que ser. Ao menor movimento, o medo..o retroceder e todas as defesas de novo. Por que? E me vi ali, naquele mesmo táxi, faz quatro meses, ousando sair na tempestade pra te encontrar na chuva e perceber quando te vi, naquela sexta-feira de fevereiro, o que eu já sabia, desde o instante em que aquele pedaço de papel dobrado trocou de mãos: um passo dado à frente e eu já não tinha para onde voltar e que o amor não era uma promessa, utopia irrealizável das minhas madrugadas insones, mas a dura e incontrolável realidade de ousar ser, eu, você, nós e acreditar no imponderável, sem garantias ou certezas. E a certeza do constante mover-se do nós - que me atravessa - por vezes rio, outras vezes mar, onda que me leva distante do que imaginei, vento que arranca as páginas dos meus livros, que emudece minha voz e me paralisa, alcança minha casa, vidros que se partem no chão, inevitavelmente. Existir para ousar ser e sentir, pele que arde, boca que cala, não ditos, atravessamentos. Amor. Vida que se quer cotidiano, presença de pernas que se embolam, de tramas que se amarram e desamarram, ao sabor dos dias, nós dois. E o mesmo encantamento de tantas horas, trilhas e sons, imagens e gestos acumulados aqui e ali, vida da gente, para viver sem medo, porque nada mais me resta do que a certeza do amor na palma da minha mão, no cheiro que resta na minha pele, instante de encontro e entrega em meio ao caos. Me ensinando a agradecer ao universo pelas respostas dadas e pelas perguntas que não ouso fazer e a me convencer a acreditar no silêncio - e como é difícil as vezes acreditar - e nas sombras, me perder para me encontrar naquele mesmo corredor, na casa vazia de paredes brancas, nossos sons e imagens, memória profunda de ser. Vida. Minha. Sua. Nossa. Infinita e inevitavelmente. Poesia que eu nunca escrevi, mas que me atravessa e me faz ser e viver. Fé. Proteção. Lágrimas que escorrem. Rio que segue. Mar Revolto. Tempestade. Entrega. Amor. Nós.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Aos 17 de junho.

Depositou um cálice de vinho na mesa escura, de madeira cansada, no curto espaço entre os dois. -Irene, a que estamos comemorando?Francisco perguntou. À sorte de estarmos vivos, disse Irene, os olhos postos na janela, de onde fluía uma luz difusa, atravessando o dia.Pegou a bebida, sorveu-a de um gole e então, falou para dentro de si: Há dias em que apenas seguimos e é necessário silenciar, para observar tudo o que não foi. Em dias como esse,dessa luz cinzenta que atravessa as alma, nossos mortos fazem fila para nos visitar e mesmo que o sol brilhe lá fora aqui dentro faz frio. Eu às vezes sinto que todos os anos,nessa mesma data, não haverá um dia em que não me lembre que uma vez, à tarde, eu tive esperança.Hoje, se já ouço novas canções,não consigo me livrar da sensação de que tudo, as paredes, as almas, as vozes, está permeado de uma intransponível atmosfera de silêncio e tempestade - porque a chuva sempre virá. Se hoje sorrio, não posso fugir da irremediável tristeza que se segue à alegria.Porque na verdade, é a consciência de que tudo, mesmos nós,perecemos e não há amor ou coragem que se se sobreponha ao tempo. Este é o mais implacável dos vilões. Dizendo isso, Irene se calou e Francisco percebeu o movimento dos ombros,sutil, como se chorasse. Pensou um instante, enfim decidiu-se: em silêncio segurou a mão de irene,temendo que o repelisse.Como não o fez, ele arriscou: Tudo que disseste eu não poderia refutar.Não posso arrancar do seu peito as dores vividas ou a brutal luta com o tempo.O que posso te dar é isso, essas mãos nas suas,minhas dores insuperadas e meus medos, meus instantes de esperança e alguma poesia.Tudo que posso é voltar meus olhos para teus mortos, para respeitá-los. Posso te dar só o silêncio que precisas para que retornes,se puderes.O que posso te dar é o amor que ainda tenho e minha esperança, não de que venceremos a batalha do tempo mas que, no intervalo entre o dia e a noite, existiremos juntos,com poesia e coragem. Irene não respondeu,mas Francisco sentiu que apertava sua mão com força e foi assim que a noite os alcançou.

domingo, 24 de maio de 2020

Comunicare (versão II)

Comunicare Dança. Movimento que cria. Espaço entre. Dois corpos , notas que soam e uma vida inteira à espera do ritmo certo, da cadência perfeita, do instante exato. E então o imprevisível.Subitamente, você. Estendendo a mão sem medo, ousando ser Nós, quando o mundo insiste em ser Eu.Imponderável que atravessa o caminho, desvia e reorienta a rota, propondo uma outra canção. De quantas formas é possível alcançar alguém?Como é possível dizer eu te amo, sem pronunciar nenhum som?Em tempos de morte, ainda é possível reaprender a voar? Qual a comunicação necessária, no espaço do encontro, quando as palavras se tornam supérfluas? Nenhuma frase, construída às pressas, verbos adjetivos, pronomes, como definir o instante de silêncio que se prolonga ao infinito, na nota que ainda vibra na pele, no contato das nossas mãos, pernas enlaçadas, par. Tua boca na minha, nós dois.  Contradança. Ser um e outro, dança mundo afora, riscando o chão da nossa sala, cotidiano que se constrói e de sim e de não, de corpo que pulsa, gesto que fala, à revelia do discurso.Você.Nos atravessamentos da estrada, em mar e fogo, prosa que se faz poesia, mãos que me acolhem, rumo de desvios, de curvas, do girar da saia, do pulso que conduz, dos olhos que prendem no instante de som e silêncio.Ser mulher para ser tua.Como nunca antes. Como tinha de ser. Que importa o tempo breve, os passos incertos, as dores do mundo, a duração da canção?Aqui dentro, só há espaço para o sim, ousando ser vida, até o limite, infinitamente.Amor

Comunicare

Dança. Movimento que cria Espaço entre. Dois corpos , notas que soam e uma vida inteira à espera do ritmo certo, da cadência perfeita, do instante exato. E então o imprevisível, estendendo a mão sem medo, ousando ser Nós, quando o mundo insiste em ser Eu.Imponderável que atravessa o caminho, desvia e reorienta a rota, propondo uma outra canção. De quantas formas é possível alcançar alguém?Em tempos de morte, ainda é possível reaprender a voar? Qual a comunicação necessária, no espaço do encontro, quando as palavras se tornam desnecessárias? Nenhuma frase, construída às pressas, verbos adjetivos, pronomes, como definir o instante de silêncio que se prolonga ao infinito, na nota que ainda vibra na pele, no contato das mãos, pernas enlaçadas, par. Contradança. Ser dois para ser nós, dança mundo afora, riscando o chão cotidiano, que se constrói e de sim e de não, de corpo que pulsa, gesto que fala, À revelia do discurso.Nos atravessamentos da estrada, em mar e fogo, prosa que se faz poesia, mãos que acolhem, rumo de desvios, de curvas, do girar da saia, do pulso que conduz, dos olhos que prendem no instante de som e silêncio.Que importa o tempo breve, os passos incertos, as dores do mundo, a duração da canção?Aqui dentro, só há espaço para o sim, ousando ser vida, até o limite, infinitamente.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Vazios

De provisórios e vazios vamos construindo nossos cotidianos, em meio à pandemia que avança, a cada semana somando mais uma casa decimal ao número de doentes e mortos. Nas cores esmaecidas da rotina viramos zumbis, resgatando pedaços de rostos, risos, memórias e afetos, tentando sobreviver. Somamos nossos dias aos hábitos que já não temos mais e colecionamos histórias de horror para a hora de dormir. O momento mais terrível não é quando a luz apaga e todos se calam. O silêncio mais frio, que gela a espinha, vem em plena luz do dia, quando abrimos nossos olhos e descobrimos que não estamos em um pesadelo, mas na incompreensível realidade que se estende infinitamente diante de nosso desespero. E ignoramos os corpos negros, furados à bala, nas esquinas. Que não contam nas estatísticas, normalmente feitas por mãos brancas, limpas, preservadas em salas acumuladas, sob paredes de cimentos, vidro, tijolos, quarentena. Aqui e ali, resistências, lágrimas e luta. Enquanto o botequim da esquina vai pouco a pouco retomando os copos molhados enfileirados diante do balcão. E aquele famoso diretor planeja o lançamento do novo filme. Nos. Cinemas. As lojas oferecem máscaras em promoção. E o Estado convoca um a uns seus melhores trabalhadores. Médicos. Enfermarias. Professores. A convocação é geral. Precisamos retomar a economia. Mas que matemática é essa que divide em mortos e vivos aqueles que irão sobreviver, que contabiliza valores ao bel prazer dos estatísticos, que acumulam prognósticos aterradores se não retomarmos a produção. De que produção falamos, senhores? Balas? Fuzis? Máscaras de oxigênio? Corpos? Enquanto isso as enfermarias seguem em silêncio, corredores frios atravessados pelos passos exauridos de mulheres de branco, luvas e máscaras que cortam fundo na pele, que já não conseguem mais chorar. Mães e pais e filhos seguem na fila de espera de internação e os jornais anunciam 1181 mortos, dentre os contáveis, número onde jovens negros executados em favelas não costumam figurar. Pandemia? Genocídio. Sistemático, constante e sobrevivente ao vírus. E enquanto os homens empunham armas, mulheres lidam com respiradores, cada dia mais escassos. E hoje é dia de “live” de quem? Se sobrevivermos ao vírus, certamente sucumbiremos ao marketing. Invadindo cada espaço da melancolia cotidiana, inspirando a conjugar o verbo resiliência. Mas o branding que não se mostra é a interminável fila de trabalhadores, sem máscaras, que seguem garantindo o isolamento alheio. Ficamos em casa não mais por apenas necessidade física, mas porque quase todos sabemos que já fazemos parte das estatísticas e morremos todos aos poucos, a cada cova que se abre, a cada máscara descartada, a cada enterro sem flores, sem sentinela, aos milhares de doentes não contabilizados, a tudo que morreu. Deveríamos morrer também a cada operação policial, a cada chute de coturno na porta, a cada cesta básica alvejada, enquanto muitos morrem de fome. Mas seguimos aqui, , doentes, confinados ou não, esperando o dia seguinte, sem trégua, sem salvação, buscando em um fragmento qualquer de pôr do sol a brusca salvação pela poesia. E sem saber quantos e como seremos, amanhã de manhã.